Direitos do consumidor em tempos de pandemia
03/2020
O ordenamento jurídico brasileiro contém inúmeros dispositivos de proteção aos direitos dos consumidores nos diversos códigos normativos que regem a matéria em suas peculiaridades.
O principal e maior deles é o Código de Defesa do Consumidor, conquista oriunda da ampliação da proteção aos direitos difusos e coletivos na Constituição Federal de 1988, a qual previa expressamente que os consumidores mereciam um código próprio para efetiva proteção de seus direitos, o que foi concretizado em 1990 com a edição desse compilado normativo.
Desde a sua publicação o Código vem garantindo aos consumidores de todo o país ampla proteção nos negócios jurídicos firmados com os fornecedores de produtos e serviços, seja através das previsões expressas contidas nos diversos capítulos que o compõe, seja na aplicação do direito material pelos juízes de direito nas demandas levadas ao Poder Judiciário pelos consumidores lesados, seja na fiscalização dos órgãos responsáveis pelo equilibro nas relações comerciais e no combate às chamadas práticas abusivas.
O código de defesa do consumidor, portanto, é instrumento que dá maior segurança aos consumidores tanto para consumirem os diversos produtos e serviços ofertados diariamente nas inúmeras plataformas comerciais hoje existentes, quanto para servir de norte quando diante de situações inéditas ou que trazem alguma dúvida sobre qual direito deve prevalecer na hipótese de conflito de interesses entre fornecedores e consumidores.
Não foi diferente quando o COVID-19, o chamado coronavírus foi identificado como ameaça real e presente tanto em solo brasileiro, quanto estrangeiro, gerando intensa discussão acerca da aplicação dos dispositivos protetivos do Código de Defesa do Consumidor, especialmente quando diante da aparente excludente de responsabilidade dos fornecedores em razão da chamada “força maior” ou “caso fortuito externo”, que ocorre quando forças exteriores ao contrato de consumo influenciam diretamente no seu resultado, impossibilitando seu integral cumprimento ou ocasionando num vício ou defeito.
Apesar de não constar expressamente no Código de Defesa do Consumidor tal excludente, ela é aplicável, a depender da situação, em razão da previsão do artigo 393 do Código Civil: “Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado”.
Se considerarmos as previsões somente do Código de Defesa do Consumidor para apurar a responsabilidade dos fornecedores pelo não cumprimento da obrigação formalizada em contrato de consumo, encontraremos nos artigos 12 e 14 do referido Codex que os fornecedores respondem de forma objetiva, ou seja, sem análise se houve culpa pelo descumprimento.
Assim, não importa se a empresa agiu com imprudência, imperícia ou negligência ao lesar um consumidor pela falha na prestação do serviço ou pela entrega de produto defeituoso, ou se teve real intenção de causar prejuízo ao consumidor. Ela será responsabilizada apenas pelo fato de ser enquadrada como fornecedora de produto ou serviço e pela qualidade de consumidor de quem adquiriu esse produto ou serviço defeituoso, tudo nos termos dos artigos 2º e 3º do Código de Defesa do Consumidor, bem como dos artigos já referidos no parágrafo anterior.
A intenção do legislador foi a de proteger os consumidores e responsabilizar os fornecedores pela aplicação da chamada “teoria do risco do negócio”, já que se o fornecedor se predispôs a fornecer produto ou serviço no mercado, deverá responder por qualquer dano gerado pela má prestação desse serviço ou pelo defeito no produto ofertado, não sendo admissível transferir esse risco ao consumidor.
O Código de Defesa do Consumidor admite somente duas hipóteses para excluir a responsabilidade dos fornecedores: 1) comprovação de que prestou o serviço e o defeito alegado pelo consumidor inexiste e 2) o dano alegado ocorreu por culpa exclusiva do consumidor ou de terceiro (par. 3º do art. 14 do CDC).
Partindo dessa premissa, podemos concluir que mesmo se considerarmos que a pandemia do COVID-19 seja um fato imprevisível e que se caracteriza como um evento de “força maior” ou “caso fortuito externo”, tal fato não afasta a responsabilidade dos fornecedores pelos danos causados aos consumidores pela falha na prestação de serviços.
Esse raciocínio se aplica, pois, o legislador, ao prever somente as duas hipóteses de exclusão da responsabilidade dos fornecedores descritas no parágrafo acima, aplicou a teoria do risco integral, responsabilizando o fornecedor mesmo nas hipóteses de “força maior” ou “caso fortuito”.
Por isso, se o consumidor adquiriu uma viagem para um país em que há grande número de casos confirmados de coronavírus ou há suspeita de contágio generalizado, ou até mesmo um simples receio do consumidor em deixar seu lar, ele poderá solicitar o cancelamento da viagem e o reembolso integral do valor da passagem aérea ou a remarcação para momento oportuno, não cabendo ao fornecedor alegar que não irá reembolsar o consumidor em razão de excludente de responsabilidade por “força maior”.
O mesmo raciocínio para qualquer serviço que demande a reunião de muitas pessoas, como “shows”, teatros, eventos, etc. O Código de Defesa do Consumidor garante a restituição do valor do ingresso desses eventos ou eventual remarcação para data oportuna, sendo essa escolha exclusiva do consumidor.
Na hipótese de negativa do fornecedor em reembolsar os consumidores, o melhor caminho é buscar denunciar o fato ao PROCON da cidade e, caso não resolvido, buscar assessoria jurídica de advogado habilitado junto à OAB para notificar o fornecedor e ajuizar a ação judicial necessária para reaver os valores pagos ou a remarcação da viagem ou evento.
Vale ressaltar no presente estudo que o STJ já decidiu que eventos de força maior podem acarretar na exclusão da responsabilidade dos fornecedores (STJ. TERCEIRA TURMA. RESP 200702410871, REL. MIN. ARI PARGENDLER. DJ DATA:01/02/2008), no entanto tal decisão não foi tomada em situação semelhante a que vivemos no momento, de pandemia causada por um vírus de contágio rápido e de maneira escalonada, o que sugere que a Corte Superior certamente teria entendimento diverso em relação à responsabilidade dos fornecedores.
Além disso, afastar a responsabilidade dos fornecedores não significa que os consumidores perdem o direito de receberem os valores pagos ou a remarcação do evento ou voo cancelado em razão da “força maior” ou do “fortuito externo” ocorrido. Isso porque os incisos do parágrafo primeiro do artigo 18 conferem aos consumidores a escolha de receber os valores pagos, a substituição do produto ou o abatimento proporcional do preço em razão do vício no produto ou serviço, ainda que tal vício seja decorrente de evento imprevisível.
O artigo 35 do aludido Código confere ao consumidor, ainda, a possibilidade de exigir o cumprimento forçado da obrigação, aceitar outro produto ou serviço equivalente ou receber os valores pagos, além das perdas e danos. No entanto, a interpretação para encontrar a melhor saída no caso concreto é analisar o Código de Defesa do Consumidor como um todo, especialmente porque na hipótese de pandemia não é possível exigir o cumprimento forçado da obrigação, considerando que tal cumprimento geraria danos tanto ao próprio consumidor quanto a terceiros.
O que estamos presenciando em relação à postura das empresas aéreas ou de eventos que cancelaram voluntariamente os voos ou eventos em razão da pandemia do COVID-19 é a devolução dos valores pagos ou remarcação do voo ou evento, sem impor aos consumidores situação desvantajosa ou prejudicial economicamente. Porém, há empresas que pretendem impedir a devolução dos valores, impondo somente a remarcação do voo/evento, o que não é admissível considerando que a escolha compete exclusivamente aos consumidores, nos termos do Código de Defesa do Consumidor.
Outras questões que surgem como consequência dos cancelamentos ou remarcação de voos, por exemplo, devem igualmente ser solucionadas pela aplicação dos princípios do Código de Defesa do Consumidor, surgindo possíveis indenizações para hipóteses como cancelamento dos voos na fila de embarque, sem aviso prévio, ou restituição parcial dos valores, numa tentativa de impor uma multa ou compensação em desfavor dos consumidores, situações inadmissíveis e que podem ocasionar o ajuizamento de ações judiciais.
Inicialmente, o melhor caminho é negociar com as empresas para ajuste de datas e horários dos voos ou eventos remarcados, devolução dos valores, transferência de créditos para voos ou eventos futuros, etc.
Caso, porém, as propostas das empresas não atendam às expectativas dos consumidores e atentem contra os ditames do Código de Defesa do Consumidor, a saída será a intervenção de advogado para resolução da questão pela via extrajudicial ou judicial.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
NUNES, Rizzato. Curso de Direito do Consumidor. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2012.
SILVA, Jorge Alberto Quadros de Carvalho. Código de Defesa do Consumidor Anotado e Legislação Complementar. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.
WATANABE, Kazuo e outros. Código Brasileiro de Defesa do Consumidor comentado pelos autores do anteprojeto. 8 ed. Rio de Janeiro – RJ: Forense Universitária, 2005.
Autor: Lucas Germano dos Anjos, mestre em Direito pela Universidade Metodista de Piracicaba e advogado.