O DIREITO DE PROPRIEDADE E SUAS RESTRIÇÕES
04/2018
A propriedade como direito fundamental é encontrada em diversos textos constitucionais e também em tratados internacionais mas encontra resistência na doutrina de PROUDHON (2008, p. 252), ARON (2003, p. 171) e BURDEAU (1966, p. 375), os quais aduzem ser seu exercício “fonte de roubo e injustiça, subordinação ao interesse coletivo e sua abolição como solução para todos os males”.
Mesmo diante de tais objeções, porém, o entendimento majoritário compreende o direito de propriedade como direito fundamental.
Outros estudiosos situam a propriedade na seção dos direitos econômicos e sociais, e não nos direitos individuais (FAVOREU, 2002, p. 201, MIRANDA, 2000, p. 525).
A depender da seção a ser enquadrada, o regime jurídico aplicável se altera, o que influenciará na concepção de aplicabilidade imediata, p. ex., ou quais seriam os remédios constitucionais aplicáveis no caso de violação.
Histórico
A propriedade como direito fundamental encontra raízes na própria ideia de liberdade do homem pelo domínio natural que exerce sobre seu corpo.
JOHN LOCKE (1963, p. 20) já afirma que “cada homem tem uma propriedade em sua própria pessoa; a esta ninguém tem qualquer direito senão ele mesmo”.
Assim, o trabalho, exercido pelo homem constitui sua propriedade, bem como os frutos obtidos. É, portanto, mais que liberdade, é condição da vida humana.
Originalmente o direito de propriedade significou o domínio sobre o produto do trabalho, o qual somente poderia ser atingido com o consentimento do proprietário.
Essa garantia estimulou a produção e o desenvolvimento econômico (segurança jurídica e estabilidade).
Com a Revolução Francesa no final do século XVII, a ideia da elaboração de um documento formal para elencar determinadas matérias “dignas” de proteção maior foi exponencialmente debatido, acarretando nos processos constituintes na Europa pós-revolução Francesa, América do Norte e, posteriormente, nos já independentes países latino-americanos.
Conceito
O conceito de propriedade é encontrado no Código Civil, em seu artigo 1.228, tratando-se de modalidade de direito real em que o proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor de coisa e o direito de reavê-la do poder de quem injustamente a possua ou detenha.
Usar é ter o direito de extrair da coisa todos os benefícios ou vantagens que ela puder prestar, sem alterar-lhe a substância;
Direito de gozo é fazer a coisa frutificar e recolher seus frutos;
Disposição é consumir a coisa, gravá-la com ônus, aliená-la ou submetê-la a serviço de outrem.
Indaga-se, porém, se o albergue constitucional ao direito de propriedade limita-se apenas aos verbos constantes do ordenamento civilista ou abrange também outros direitos de natureza patrimonial?
O entendimento doutrinário majoritário é aquele que entende a proteção não só do conceito extraído do Código Civil, mas também de outros direitos de conteúdo patrimonial.
Assim, entende-se o direito insculpido no artigo 5º, caput, e inciso XXII da CF como “direito fundamental de não ser alguém despojado de direitos de seu patrimônio sem justa indenização.”
O conceito de propriedade, porém, não fica restrito à seara patrimonialista do CC/02, abrangendo também outros valores.
Não só a doutrina compreende essa abrangência de interpretação acerca do alcance da norma constitucional. A legislação infraconstitucional também prevê a incidência do preceito constitucional, como por exemplo o CTN em seus artigos 29 e 32, os quais estabelecem a base tributária do IPTU e ITR na propriedade, no domínio útil ou na posse do imóvel.
E não é só, pois a jurisprudência do STF também debateu o conceito e abrangência de propriedade ao entender que o direito sobre quantias depositadas em bacos deixa de ter natureza real (propriedade), passando a assumir caráter creditício (ADI 1.715-3/DF).
Assim, entendeu a Suprema Corte pela redução da abrangência extraída do artigo 5º, XXII da CF, não aplicando a garantia constitucional da propriedade a conteúdo patrimonial decorrente de depósito bancário.
Limitações à propriedade
Função Social
Na CF/88 encontramos também a preocupação com a função social da propriedade com a ideia de impor limitações à propriedade para atender aos desejos e interesses do seu titular e também da sociedade.
A CF/88 trouxe a necessidade de observância da função social de imóveis rurais e urbanos (artigos 182, par. 2º e artigo 186, I a IV).
Diferente do CC/16, moldado de acordo com a influência do individualismo da ordenança napoleônica de 1804, ordenamento que foi obrigado a adaptar-se com a determinação constitucional, instituindo para tanto o par. 1º ao artigo 1.228, que permite ao proprietário usar, gozar e dispor da coisa e reavê-la de quem injustamente a possua mas deve pautar-se em compasso com suas finalidades economias e sociais.
A função social, porém, não se limita a tais fatores, devendo o proprietário ainda, preservar a flora, a fauna, as belezas naturais, equilíbrio ecológico e do patrimônio histórico e artístico (respeito aos direitos de 3ª dimensão).
O artigo 1.228, par. 2º, além de trazer limitações ao direito de vizinhança, também proibiu atos que não tragam comodidade ou utilidade ao proprietário e sejam realizadas para prejudicar terceiros (inspiração no artigo 833 do CC da Itália).
Além disso, os paras. 4º e 5º do artigo 1.228 trouxeram a previsão de privação da propriedade quando o imóvel for de extensa área, estiver ocupado interruptamente e de boa-fé por mais de 5 anos, por considerável número de pessoas e se estas realizaram em conjunto ou separadamente obras e serviços considerados pelo juiz como de interesse social e econômico relevante (sempre com indenização ao proprietário).
Tal instituto se assemelha à expropriação indireta (aquisição de domínio compulsória mediante indenização).
O pagamento da indenização deve ser feito pelo Município (se imóvel urbano) e órgão federal (se rural), já que não haveria sentido exigir dos possuidores o valor apurado, especialmente porque a norma busca favorecer pessoas carentes.
Confisco
Um exemplo de limitação direta no texto constitucional ao direito de propriedade está no artigo 243 da CF, que autoriza o confisco de glebas (expropriação imediata, sem indenização) utilizadas para plantio ilegal de plantas psicotrópicas.
O próprio texto constitucional, porém, prevê sanções menos severas do que aquelas citadas em epígrafe. O descumprimento da função social da propriedade não descaracteriza o direito de propriedade, mas sim a imposição de penalidades até chegar à desapropriação.
Se imóvel rural, a CF prevê a desapropriação para fins de reforma agrária (art. 184);
Se imóvel urbano, há a aplicação sucessiva de: I – Parcelamento ou edificação compulsórios; II – IPTU progressivo no tempo; III – Desapropriação (art. 182, par. 4º).
Sempre caberá indenização e observância a procedimento próprio.
Acerca da indenização, a CF prevê no artigo 5º, XXIV o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, com exceções.
O STF também já decidiu sobre o dever de indenizar no caso de privação do direito de propriedade (RE 134.297-8/SP). Limitações administrativas ao direito de propriedade, ainda que de caráter ambiental ensejam o dever de indenizar.
Qualquer ação que tenha por finalidade privar o proprietário de seu bem, expropriando-o sem o pagamento de indenização constitui CONFISCO.
Essa penalidade somente é admitida de forma excepcional no caso de cometimento de determinadas infrações (art. 243 CF): confisco de glebas por plantio de plantas psicotrópicas e no parágrafo único, a apreensão de qualquer bem utilizado no tráfico de drogas.
O Código Penal também prevê no artigo 91 a perda em favor da União (ressalvados os direitos do lesado e de terceiro de boa-fé) “do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a pratica do fato criminoso, além dos instrumentos do crime se seu fabrico, alienação, uso ou detenção constitua fato ilícito”.
Assim, o confisco é medida excepcional de privação de liberdade sem pagamento de indenização, somente podendo ser aplicada com previsão expressa em Lei.
Do exposto, é imperioso que os proprietários de imóveis urbanos ou rurais observem as exigências legais referentes à limitação do exercício do direito de propriedade, vez que caso não cumpram com o determinado no ordenamento jurídico, poderão vir a sofrer sanções que variam de imposição de base de cálculo do IPTU de forma progressiva até a desapropriação do imóvel em favor do Poder Público.
Referências bibliográficas
ARON, Raymond. O marxismo de Marx. São Paulo: Arx, 2003.
BURDEAU, Georges. Les libertés publiques. 3. ed. Paris: LGDJ, 1966.
FAVOREU, Louis et al. Droit des libertés fondamentales. 2. ed. Paris: Dalloz, 2002
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo civil. São Paulo: IBRASA, 1963.
MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 2000
NOVELINO, Marcelo. Manual de Direito Constitucional – Vol. Único – 9ª Ed. 2014
PEREIRA, Caio Mario da Silva. Instituições de Direito Civil, v. III, 11 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2008.
PROUDHON, Pierre-Joseph. What is property: an inquiry into the principle of right and of government. Teddington: Echo, 2008.
Autor: Lucas Germano dos Anjos, advogado, mestrando em direito