Usucapião coletiva e função social da propriedade
02/2019
O direito de propriedade é direito fundamental, nos termos do artigo 5º, inciso XXII da Constituição Federal.
Além da previsão constitucional, encontramos no Código Civil de 2002, em seu artigo 1.228, a previsão expressa dos indivíduos que detém uma espécie de propriedade, a possibilidade de usarem, gozarem e disporem dos mesmos e, ainda, o poder de reivindicação de quem injustamente o detenha através das ações reivindicatórias.
A usucapião coletiva encontra previsão na Lei 10.257/2001, comumente conhecida como Estatuto da Cidade, diploma legal que define a usucapião coletiva em seu artigo 10.
Conforme se extrai da referida norma, para existir o direito subjetivo dos indivíduos em pleitear o reconhecimento da usucapião coletiva, é imprescindível que os possuidores do imóvel exerçam a posse (independentemente se com animus domini, ou seja, como se proprietário fosse ou sem tal intenção) em área urbana com mais de 250m², onde não seja possível identificar a quota-parte pertencente a cada um dos possuidores, que exerçam, ao menos, cinco anos de posse pacífica, não possuindo outro imóvel, seja urbano ou rural.
Na usucapião ordinária, especial ou extraordinária, é imprescindível que a posse seja exercida com animus domini, destacando-se esse afastamento na usucapião coletiva para prestigiar a função social da propriedade e também para cumprir com as missões da Constituição em garantir uma sociedade justa e igualitária, vez que as hipóteses concretas onde o instituto será levantado geralmente se tratam de famílias humildes buscando um local para viverem.
Essa situação vem se tornando comum em nosso País, diante do aumento do número de favelas, núcleos habitacionais caracterizados sem planejamento urbano ou de serviços públicos essenciais, nos quais os moradores têm posse material certa de seus imóveis (geralmente barracos ou casas pequenas de alvenaria), mas que, em razão do caos urbanístico das vielas e a precariedade das construções, inviabiliza a visualização dos limites de cada unidade, especialmente porque as mesmas se alteram constantemente.
Tal instrumento legal foi necessário para regularizar essas áreas, cuja ausência de demarcação inviabilizava o registro da propriedade junto ao Cartório de Registro.
Não há que se confundir a usucapião coletiva com a desapropriação judicial, vez que nesta última há a necessidade do pagamento de indenização ao proprietário, o que não ocorre em nenhuma espécie de usucapião.
Ademais, a usucapião coletiva só pode ser requerida por pessoas de baixa renda, não detentoras de domínio de outro imóvel, enquanto que tal requisito não é exigido para a desapropriação judicial, o que inclusive é objeto de críticas quando embasado este último no “interesse social”.
A usucapião seria um modo originário de aquisição, assim como na desapropriação, vez que a nova situação jurídica independe da existência de qualquer vinculação com o proprietário ou possuidor anterior, que, se por acaso existir, não será o transmitente da coisa.
Ainda que o proprietário alegue direito de indenização, como poderá o magistrado fixá-la se o polo ativo é formado por pessoas de baixa renda?
Há quem defenda que, nesse caso, diante do abandono do imóvel pelo proprietário, a ausência de indenização constitui sanção em razão da inobservância da função social da propriedade, não cabendo qualquer tipo de reparação por sua conduta contrária aos ditames constitucionais ora tratados.
As críticas surgem quando nos deparamos com a realidade de nosso País, especialmente porque a lei não traz o requisito da posse “mansa e pacífica”, sendo uma “brecha” para que invasores exerçam posse violenta protegida pelo ordenamento jurídico.
O fato é que a posse deve ter caráter social e cultural produtivo, o que ameniza essa situação, vez que os possuidores deverão comprovar o uso da terra com tal caráter.
Trata-se de verdadeira “posse social”, a qual embasa a redução do lapso temporal para a prescrição aquisitiva por usucapião em todas as suas modalidades, não sendo crível imaginar que somente no caso da usucapião coletiva, onde há uma maior produção de obras e serviços de relevante interesse social e econômico, surgiria a obrigação de realizar o adimplemento de uma indenização para possibilitar a apropriação do bem.
Da mesma forma que a Constituição de 1988 e o Código Civil de 2002 abandonaram o caráter individualista no uso e gozo da propriedade, há que se fazer nova leitura da posse coletiva, superando a interpretação que restringe somente ao caráter patrimonial e prestigiar os fundamentos da Constituição na valorização da pessoa humana e na proteção de sua dignidade.
Além de todos esses argumentos trazidos, inegável que a posse coletiva qualificada pela moradia impede a pretensão reivindicatória se o proprietário abandonou o imóvel, provocando o perecimento dos efeitos do seu direito de propriedade, cabendo indenização perante o Poder Público Municipal.
Nossa conclusão, portanto, aponta para o Estado-Administração como responsável pelo pagamento de indenização ao proprietário de imóvel improdutivo invadido e considerado como relevante socialmente pelo próprio ente da Administração. Assim, se estará resguardando o direito fundamental dos envolvidos, sejam os ocupantes que fixam residência e dão produtividade à terra, seja do proprietário em receber indenização justa e em dinheiro da Administração pela inércia em providenciar a desapropriação e pela efetivação de políticas públicas nas áreas invadidas.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Lucas Germano dos Anjos, advogado e mestrando em Direito