NOS 16 ANOS DA LEI CONTRA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA, CONGRESSO REFORÇA PROTEÇÃO À MULHER
No mês em que são celebrados os 16 anos da aprovação da lei que tipifica o crime de violência doméstica (Lei 10.886,de 2004), o Congresso Nacional avançou na aprovação de projetos que reforçam a proteção às vítimas e ampliam punições aos agressores.
Diante do aumento de denúncias de agressão e casos de violência doméstica e familiar em meio ao isolamento social em decorrência do novo coronavírus, o Senado aprovou, no dia 3, projeto de lei (PL 1.291/2020) que torna essenciais os serviços relacionados ao combate e prevenção desse tipo de crime praticado contra mulheres, idosos, crianças, adolescentes e pessoas com deficiência durante a pandemia de covid-19. Após ser aprovado pela Câmara dos Deputados na última quarta-feira (10), o texto seguiu para sanção presidencial.
Entre as medidas consideradas essenciais, de acordo com o projeto, está a continuidade do funcionamento dos serviços e das atividades públicas de atendimento das ocorrências de qualquer tipo de ameaça, além do atendimento presencial de ocorrência envolvendo alguns casos de lesão corporal, como as de natureza grave, gravíssima, ameaça praticada com uso de arma de fogo e corrupção de menores, estupro e feminicídio. O texto determina também a manutenção, sem suspensão, dos prazos processuais, a apreciação de matérias e o atendimento às partes.
A proposta, que teve origem na Câmara dos Deputados a partir de sugestões apresentadas pela bancada feminina do Congresso Nacional, modifica o Decreto 10.282/2020, que estabelece os serviços considerados essenciais durante a pandemia, e a Lei Maria da Penha (Lei 11.340, de 2006). No Senado, foi relatado pela senadora Rose de Freiras (Podemos-ES), que buscou aglutinar sugestões de outros projetos apresentados pelos senadores Confúcio Moura (MDB-RO) e Izalci Lucas (PSDB-DF), além de acatar o conteúdo de 15 emendas para tornar a legislação ainda mais efetiva.
O projeto faz parte de uma lista de matérias apresentadas desde o início da adoção das medidas de isolamento social recomendas pelas autoridades de saúde e governantes para conter o contágio pelo novo coronavírus, quando dados oficiais já apontavam um crescimento de denúncias de violência doméstica. Ainda em março, com o início da quarentena, o número de denúncias recebidas pelo canal Ligue 180, do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (MMFDH), aumentou 17,9% em comparação com o mesmo período do ano anterior. Já em abril, o crescimento foi de 37,6% considerado o mesmo mês de 2019.
Na avaliação da senadora Rose de Freitas, que também está à frente da Procuradoria Especial da Mulher do Senado, o projeto representa um passo importante no auxílio a pessoas que têm sido vítimas constantes de agressão e se encontram ainda mais vulneráveis em época de confinamento.
— Nós estamos, no tempo e na hora, tomando as atitudes necessárias. É a construção a favor de uma mulher presa dentro de um cenário, sofrendo as consequências da violência, da cultura machista que ainda perdura. Isso não é pouca coisa — disse durante sessão remota em que foi aprovada a matéria.
Além dos números divulgados pelo MMFDH, outro dado deixou ainda mais evidente os riscos que a mulher tem enfrentado com o isolamento social e o tempo maior de convivência com o agressor: os casos de feminicídio aumentaram 22,2% no país nos meses de março e abril de 2020, comparados com o mesmo período do ano anterior. Os dados fazem parte do estudo “Violência doméstica durante a pandemia de covid-19“, elaborado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) e divulgados no dia 1º de junho.
Para o senador Paulo Paim (PT-RS), presidente da Comissão de Direitos Humanos (CDH), o cenário é ainda mais preocupante já que muitas das pessoas agredidas não conseguem denunciar o agressor por medo, restrições a canais de denúncia ou por não terem contato com familiares e amigos.
— Muitas mulheres não conseguem fazer as denúncias, o que gera um número alto de subnotificações. A violência doméstica contra a mulher sempre esteve presente no país, mas o isolamento social, em tempos de pandemia, só agravou a situação. A Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos denuncia que esse tipo de violência cresceu em todo o país — alertou o senador durante sessão remota do Senado.
Registros e medidas protetivas
A pesquisa do FBSP, realizada com informações de 12 estados, revelou também que houve uma queda de 25,5% nos registros de lesão corporal dolosa em decorrência de violência doméstica em março e abril de 2020 em relação ao mesmo período de 2019, o que, para o próprio estudo, caracteriza a dificuldade que essa vítima está tendo de registrar o boletim de ocorrência presencialmente em uma delegacia.
“Em todos os estados para os quais obtivemos os dados, foi verificada redução dos registros de lesão corporal dolosa em decorrência de violência doméstica no período de março e abril de 2020. A redução média para março e abril de 2020, em relação ao mesmo período de 2019, é de 25,5%, o que coincide com o padrão verificado na Itália e em cidades dos Estados Unidos, onde as mulheres encontraram mais dificuldade de se deslocar para a delegacia”, analisa o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
O PL 1.291/2020, aprovado pelo Congresso, traz uma determinação importante para esse período de calamidade pública: estabelece que o registro da ocorrência poderá ser realizado por meio eletrônico ou de número de telefone de emergência designado pelos órgãos de segurança pública, além de determinar que o poder público deverá criar um canal eletrônico permanente para o recebimento de denúncias de violência doméstica e familiar contra a mulher e de violências cometidas contra crianças, adolescentes, idosos e pessoas com deficiência.
Conforme o estudo do FBSP, nem todos os estados estão disponibilizando a função de registro de ocorrência em caráter virtual. Somente 18 estados e o Distrito Federal oferecem o mecanismo para que a vítima possa fazer a denúncia à polícia pela internet. Ao realizar o registro, o reconhecimento da violência doméstica ou familiar não dependerá de condenação, bastando a alegação da parte, ou do Ministério Público, ou o reconhecimento de ofício pelo juiz, sem prejuízo de eventual responsabilização por possível litigância de má-fé.
Por esse canal remoto, a vítima de violência poderá inclusive fazer a solicitação de medida protetiva de urgência, que é considerada um dos grandes avanços incluídos na Lei Maria da Penha, complementada pela Lei nº 13.827, de 2019. Elas funcionam como tutelas de urgência autônomas, que poderão ser concedidas de imediato por um juiz, ou em situações específicas por um delegado de polícia, independentemente de audiência prévia e manifestação do Ministério Público, podendo o seu descumprimento pelo agressor acarretar sua prisão preventiva.
Caso o PL 1.291/2020 seja sancionado, as medidas protetivas determinadas pela Justiça, como o afastamento do agressor do lar e a proibição de determinadas condutas, serão prorrogadas enquanto durar a pandemia de covid-19. O senador Izalci Lucas, representante do Distrito Federal, localidade que ocupa o segundo lugar no ranking de denúncias sobre violência doméstica no Ligue 180, destacou a importância de dar seguimento aos processos que tratam desses crimes.
“Na crise do coronavírus, processos envolvendo violência doméstica e familiar estão suspensos por determinação do CNJ [Conselho Nacional de Justiça]. No entanto, o isolamento para conter a doença não pode gerar mais insegurança a menores, mulheres e à família. Os processos relativos a esse tipo de violência não podem parar”, afirmou no Twitter.
Para a senadora Zenaide Maia (Pros-RN), presidente da Comissão Mista de Combate à Violência contra a Mulher (CMCVM), é preciso reforçar junto à população todas as informações sobre os serviços e rede de apoio disponíveis às vítimas de violência doméstica.
— Essa violência não ocorre só por causa das privações que estão passando as famílias, nem também pode ser justificada ou tolerada por esse motivo. As raízes são profundas, de uma cultura machista. Vamos fazer com que chegue a mulher a informação, essa rede de proteção. Isso existe e está funcionando e está à disposição dessas mulheres que estão sofrendo agressão — disse durante sessão remota.
Aprimoramentos
A violência praticada no contexto domiciliar ou familiar contra parceiros, cônjuge, crianças, adolescentes ou idosos só passou a constar no Código Penal com a sanção da Lei 10.886 em 17 de junho de 2004. Considerada um grande avanço na época, a legislação previa pena de detenção de seis meses a um ano e, caso a agressão gerasse lesão corporal de natureza grave ou fosse seguida de morte, a pena seria aumentada em um terço. Dois anos depois, com a sanção da Lei Maria da Penha, a legislação passou a prever pena de detenção de três meses a três anos.
A Lei Maria da Penha, que acabou recebendo esse nome em referência ao caso de agressão que se tornou representativo na época, foi sancionada em agosto de 2006 e ao longo dos anos sofreu alterações para reforçar a rede de apoio às vítimas de violência doméstica. Além de tornar crime a agressão doméstica e familiar contra a mulher, deixando de tratá-la como de menor potencial ofensivo, a legislação incluiu como vítima desse tipo de agressão a pessoa com deficiência e passou a estabelecer as definições do que é a violência doméstica e familiar e a caracterizar suas formas, que podem ser configuradas como física, psicológica, sexual, patrimonial e moral.
A lei é atualmente entendida como uma rede de mecanismos capazes de proteger as vítimas, punir agressores, e vai além do seu caráter judicial. Isso porque, de acordo com o Instituto Lei Maria da Penha, ela insere a criação de políticas públicas de prevenção, assistência e proteção às vítimas; prevê a instituição de Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; institui medidas protetivas de urgência; e estabelece a promoção de programas educacionais com perspectiva de gênero, raça e etnia, entre outras normas.
Entre as mudanças recentes aprovadas pelo Senado e já transformadas em lei está a que determina que agressores de mulheres podem ser obrigados a frequentar centros de reeducação, além de receber acompanhamento psicossocial (Lei 13.984, de 2020). Nesse caso, o juiz já poderá obrigar eventuais agressores a frequentarem esses cursos a partir da fase investigatória de cada caso verificado de violência contra a mulher.
Outra proposta (PL 510/2019) aprovada em 2019 pelos senadores gerou a Lei 13.894, de 2019, que voltou a prever a competência dos Juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher para ações de divórcio, separação, anulação de casamento ou dissolução de união estável, nos casos de violência doméstica. Outras alterações estão previstas na Lei 13.871, de 2019, que obriga o agressor pelo ressarcimento dos custos de serviços de saúde prestados pelo Sistema Único de Saúde (SUS) às vítimas de violência doméstica e familiar, e na Lei 13.880, de 2019, que estabelece a apreensão de arma de fogo registrada ou sob posse do agressor em casos de violência doméstica e familiar contra a mulher.
Outras propostas
Apesar de ser considerada pela Organização das Nações Unidas (ONU) uma das três legislações mais avançadas do mundo em relação ao tema, o alto índice de denúncias de casos de violência doméstica e o aumento do número de feminicídios no Brasil ainda levam senadores a propor aprimoramentos na Lei Maria da Penha. Nas comissões temáticas da Casa tramitam diversos projetos que buscam desde a ampliação dos mecanismos de proteção e assistência à mulher por meio de mudanças na lei até a alteração de outras normas para agravar a pena de quem comete violência doméstica.
É o caso do PL 3.257/2019, da senadora Daniella Ribeiro (PP-PB), que inclui como causa de afastamento do agressor do lar a violência psicológica, moral ou patrimonial contra a mulher. De acordo com a autora, as agressões desse tipo já estão na definição de violência doméstica e familiar da própria Lei Maria da Penha, contudo, como observou Daniella, o texto acabou por restringir o afastamento do agressor do lar somente aos casos de risco atual ou iminente à vida ou à integridade física da mulher, o que deixa de abranger outras situações.
“Nunca é demais lembrar que esse tipo de violência acarreta prejuízos graves tanto à mulher quanto a seus filhos, podendo trazer consequências deletérias para o bem-estar da ofendida, bem como ensejando o risco de dificultar uma retomada da vida após a circunstância violenta, em razão dos danos sofridos”, acrescentou na justificativa do projeto. O texto, que é relatado pela senadora Leila Barros (PSB-DF), aguarda análise na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ).
Conforme estudo realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública em parceria com a empresa Decode, feito a pedido do Banco Mundial e divulgado em abril, houve um aumento de 431% de relatos de brigas de casal feitos por vizinhos em redes sociais entre os meses de fevereiro e abril deste ano.
Para tentar transformar esses relatos virtuais em denúncia concreta nos canais oficiais, o senador Luiz do Carmo (MDB-GO) apresentou um projeto (PL 2.510/2020) que, entre outras determinações, estabelece o dever de condôminos, locatários, possuidores de imóveis e síndicos de informarem às autoridades competentes os casos de violência doméstica e familiar cometidos contra a mulher e que tenham conhecimento no âmbito do condomínio. A medida prevê também o aumento em um terço da pena para o crime de omissão de socorro, quando se tratar de mulher em situação de violência doméstica ou familiar. Atualmente, o Código Penal estabelece pena de um a seis meses de detenção para quem omite socorro.
“Pretendemos, com tais medidas, fortalecer a delicada posição das mulheres brasileiras, que nem sempre têm condições de solicitar ajuda ou socorro nas mais diversas situações de violência de que são vítimas, entrando, lamentavelmente, como dados frios e sem rosto em relatórios estatísticos”, alertou o senador na justificativa do projeto, que aguarda votação em sessão remota.
Outra proposta que visa a ampliar a proteção e o atendimento da vítima de violência doméstica é o PL 781/2020, do senador Rodrigo Cunha (PSDB-AL). O texto estabelece a destinação de recursos da União para a criação de delegacias especializadas de atendimento à mulher nos estados com o objetivo de prestar assistência psicológica e jurídica às vítimas de violência física ou moral. Ainda de acordo com a matéria, essas unidades devem funcionar 24 horas, inclusive em feriados e fins de semana, e o atendimento deverá ser feito em sala reservada, preferencialmente por policiais do sexo feminino.
Os recursos para garantir pelo menos uma delegacia em cada microrregião dos estados, conforme a proposta, serão repassados pela União por meio do Fundo Nacional de Segurança Pública (FNSP), e os estados terão cinco anos para criar as delegacias especializadas. Na justificativa do projeto, o senador informou que, de acordo com a Pesquisa de Informações Básicas Municipais e Estaduais (Munic) de 2019, divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), não há delegacia especializada de atendimento à mulher em 91,7% dos municípios brasileiros. A matéria aguarda encaminhamento para iniciar tramitação nas comissões competentes.
Na CCJ tramitam outras propostas que reforçam a legislação de combate à violência contra a mulher, como o PLS 446/2018, que considera crimes hediondos a lesão corporal gravíssima e a lesão corporal seguida de morte quando praticadas contra mulher, criança ou maior de 60 anos. O texto é da senadora Rose de Freitas e o relator, o senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG).
Já o PLS 47/2012, prioriza o atendimento policial à mulher idosa vítima de violência. A prioridade vale inclusive para municípios que não contam com serviço especializado de atendimento à mulher. De autoria do senador Ciro Nogueira (PP-PI), o projeto receberá parecer do senador Humberto Costa (PT-PE).
Como denunciar
Além do Ligue 180 e do Disque 100 (Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos), que funcionam 24 horas por dia, todos os dias, inclusive nos finais de semanas e feriados, as denúncias podem ser realizadas pelo 190 (Polícia).
Fonte: Agência Senado | AASP